sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

A Assembleia da República de 1976 a 1999: da legislação à legitimação

A Assembleia da República sofreu, durante os seus vinte anos de existência, profundas mudanças. Estas mudanças são um indicador do inerente desenvolvimento político da, ainda jovem, democracia portuguesa. Irá procura-se identificar o modo como as mudanças levaram à adopção de um novo papel da Assembleia da República, ou seja, a passagem de uma instituição orientada para a legislação, para uma instituição orientada para a legitimação. Esta análise assenta em três dimensões: o quadro regimental; o processo legislativo (“na falta de melhor tradução de policy-making”) onde Michael Mezey e Philip Norton identificam vários, e graduais, níveis de intervenção do parlamento no processo de feitura e promulgação da legislação; e a legitimação que se baseia no conceito amplificado, por Robert Pakenham, com a identificação de funções “não decisionais” executadas pela instituição parlamentar. A legitimação pode ser entendida como “o processo de expressão pelo parlamento de petições e problemas da sociedade”.
Em 1974, com base no programa do MFA, formou-se uma assembleia unicamaral de forma a cortar com o passado. A Constituição aprovada em 1976 estabeleceu um lugar de destaque no sistema político nacional à Assembleia da República, não dando, contudo, o desmesurado parlamentarismo da I República. O poder político ramifica-se entre o Presidente da República, o parlamento e o governo. De 1974 a 1976, o rumo da democracia portuguesa foi decidido num confronto entre dois grupos que idealizavam regimes diferentes. Por um lado a democracia parlamentar, transitoriamente vigiada por um órgão militar, era defendida (sendo esta a apoiada pela maioria da população nas eleições da Assembleia Constituinte) e por outro lado era defendido um modelo revolucionário sob o domínio militar e com representação política directa. Desde 1976-1985 e, em apenas três legislaturas, nove governos diferentes tomaram posse: um minoritário, cinco maioritários com coligação, passando por três governos presidenciais. O aparecimento, em 1985 (IV Legislatura e o primeiro governo de Cavaco Silva), do quinto partido político – Partido Renovador Democrático (PRD) – originou o “terramoto político” em que originou uma assembleia com uma representação dispersa e sem um poder identificável. Nessa mesma legislatura outros dois factores marcaram uma relevante mudança na sociedade portuguesa, foram eles: a eleição do primeiro Presidente da República civil, em 1986, Mário Soares (é relevante dizer, também, que todos os candidatos eram civis) e a entrada de Portugal na Comunidade Económica Europeia. No entanto, a mudança propriamente dita iria ocorrer em 1987 aquando da aprovação da moção de censura ao governo por parte do PRD. A Assembleia foi dissolvida e as eleições deram a maioria absoluta ao PSD. Pode-se, então, afirmar que em 1987 um novo ciclo democrático foi catecúmeno através da estabilidade política obtida.
No que diz respeito às características institucionais, a Assembleia da República é eleita por quatro anos e os 230 deputados são eleitos por um sistema de representação proporcional, que prevalece em toda a actividade do parlamento bem como nos órgãos que a entregam, de acordo com a média mais alta de Hondt. Uma das consequências deste sistema é o peso que os grupos parlamentares têm em prejuízo do deputado. O grupo parlamentar (GP) é a “unidade base de actuação da Assembleia” (Cristina Leston-Bandeira). A Conferência dos Representantes – “onde se toma decisões sobre a agenda do plenário que é composta por um representante de cada GP e do governo bem como pelo presidente da Assembleia da República” (Cristina Leston-Bandeira) – dos GPs, isto é, a Conferência dos Líderes, traduz a centralização da actividade parlamentar sobre o GP. É necessário dizer que os GPs portugueses, tal como em outros parlamentos de representação proporcional, perfilham uma forte disciplina partidária.
A actividade da Assembleia da República está regulamentada ao Regimento que tem sofrido alterações. Em 1982 uma nova edição do Regimento foi publicada em que consistia numa “adaptação à nova numeração constitucional”. No entanto,a primeira grande revisão foi feita entre 1984 e 1985 onde os procedimentos parlamentares foram largamente revistos em que se verificou dois efeitos essenciais. Um foi a “regulamentação da prática parlamentar” e outro, o “esforço de racionalização dos procedimentos parlamentares”. Contudo só com a revisão de 1988 é que se viria a materializar a racionalização da actividade da Assembleia da República.
Em 1976, segundo Cristina Leston-Bandeira, “o parlamento era dominado por debates do plenário onde todos os procedimentos administrativos legislativos aconteciam na Câmara e as comissões tinham pouca autonomia nas competências que lhes estavam adscritas”. Hoje em dia dá-se primazia à duração dos plenários (que durava cerca de três dias enquanto que nos dias de hoje duram apenas uma sessão). Esta diminuição do tempo utilizado na Câmara serve, principalmente, para uma “redução explícita do limite de tempo indicado no Regimento em relação a um tipo de debate e, por outro lado, a remissão para a Conferência de Líderes da decisão quanto ao tempo global a utilizar em cada debate” bem como na disposição entre os GPs. Esta queda da preponderância da Câmara foi seguido por uma “transferência de competências para as comissões”. Estas comissões não podiam reunir-se ao mesmo tempo que o plenário. Isto mudou em 1985 e em 1988 aditou-se-lhes a “etapa da especialidade”. E, a partir de 1993, a maior parte das reuniões em comissão puderam ser presenciadas pela comunicação social. Pode-se, portanto, dizer que tem havido uma reorganização de funções entre o plenário e as comissões.
Outra característica do processo de racionalização tem sido como os critérios maioritários têm substituído os critérios consensuais na distribuição de direitos e responsabilidades. Os direitos parlamentares estão cada vez mais favoráveis aos GPs de maiores dimensões. As grandes alterações deste processo foram no âmbito do direito dos GPs e na regra de decisão da Conferência de Líderes, em que foi introduzida a regra maioritária, isto é, desde 1985 que as decisões são tomadas por maioria quando não há consenso. Esta revisão (1985) implementou a regulação da distribuição de direitos parlamentares de acordo com a dimensão de um GP, pertencendo-se ou não ao Governo. Esta dimensão do GP tornou-se um factor-chave com o reforço dos critérios maioritários em 1988.
A Constituição portuguesa outorga um papel legislativo essencial à Assembleia da República. A Constituição determina matérias sobre as quais o parlamento detém reserva absoluta de competência legislativa, ou seja, apenas este pode propor, emendar e aprovar; quando a competência é relativa, o Governo pode legislar pelos seus próprios meios, com a devida autorização. O Governo, também pode produzir legislação (decretos-lei) desde que respeite as competências do parlamento. Além das reservas de competência, o parlamento pode aprovar determinada legislação com base em maiorias qualificadas, desde que Constitucionalmente previstas.
Pode-se afirmar que com a instituição do quadro legal do regime democrático, o papel da Assembleia da República no processo legislativo foi sendo cada vez menos importante, uma vez que aumentava a necessidade de uma legislação mais específica e regulamentadora – competência especificamente governamental. No entanto, ainda hoje, o parlamento, dependente do tipo de maioria partidária, tem um papel relevante no processo legislativo.
As propostas de lei adoptam uma consideração muito mais positiva que os projectos de lei, uma vez que, existe uma proporção maior de propostas discutidas na generalidade, bem como aprovadas em votação final, sendo um menor número de leis rejeitadas.
Uma proporção importante das propostas de lei reporta-se a pedidos de autorização legislativa que representam uma “extensão do poder legislativo do parlamento e exige-se-lhe que defina com clareza o objecto e o sentido da matéria sobre a qual se pretende legislar”. Então, pode-se afirmar que o papel da Assembleia da República no processo de feitura das leis é importante e varia de acordo com o apoio parlamentar do governo.
A Assembleia da República poderia submeter todos os decretos-lei a uma apreciação parlamentar mas, dificilmente, teria capacidade de fiscalização de todos os decretos publicados. Então, o papel da Assembleia da República, embora importante, é parcial uma vez que a legislação governamental detém um enorme peso.
O Orçamento de Estado (OE) é um importante indicador da capacidade da Assembleia de condicionar o processo legislativo. Da análise de 1983 a 1995, de Philip Norton, dos debates do OE, chegou-se a uma “tipificação do papel da Assembleia da República no processo legislativo”: parlamento influenciador (“policy-influencing”) “que consegue modificar e rejeitar as medidas apresentadas pelo executivo mas não consegue substituí-las pelas suas próprias propostas”; parlamento produtor (“policy-making”) que modifica e rejeita e substitui as medidas propostas pelo executivo; parlamento com pouco ou nenhum impacto no processo legislativo (ligeslature with little or no policy affect”) que não consegue modificar, rejeitar nem modificar as medidas propostas pelo governo.
Pode-se concluir, então, que a Assembleia da República dos anos 90 é diferente da de 1976. As primordiais características do sistema político não se alteraram e o sistema partidário tem-se mantido estável, mas é sabido que a situação política nacional foi bastante alterada e a Assembleia da República adaptou-se a estas alterações. No período de tensão entre um modelo revolucionário e outro que sustentava uma democracia representativa, a Assembleia Constituinte surgiu “como uma afirmação do ideal parlamentar” com um forte apoio populacional. Na consolidação da democracia, a Constituição determinou poderes legislativos e políticos à Assembleia da República, onde as forças políticas aferiram o sistema.
Em 1985-1987 (V Legislatura) vários factores específicos deram início a um parlamento singular em que a oposição conservava o poder decisional. “A eleição de uma maioria absoluta marcou o início de um novo ciclo do parlamento português” onde os procedimentos foram racionalizados e reduzido o tempo de competências do plenário. No entanto, e à medida que o poder decisional perdia fulgor, a imagem do parlamento declinava-se também. Neste contexto deu-se a revisão regimental de 1993 que estabeleceu alguns elementos importantes que proporcionaram a adaptação do parlamento português a um novo papel. A partir daí, o parlamento tem respondido de uma forma mais rápida e directa aos “inputs da sociedade”. Pode-se, então, afirmar que a Assembleia da República tem amplificado o seu papel de instituição de legitimação. Actualmente, a Assembleia da República, é vista como uma instituição mais forte, uma vez que aumentou o seu papel de legitimação. Contudo, ainda terá de se "percorrer um longo caminho para uma real profissionalização da vida parlamentar portuguesa", isto é, o designado amadurecimento.

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